Bom, dizem que um jornalista tem que se distanciar do seu lado pessoal para cobrir de forma imparcial uma notícia, mas quando se trata de uma paixão, fica difícil separar o lado emocional do profissional. Como não era nem aspirante à jornalista em 2007, me dou ao direito de escrever este post com toda a paixão que tenho desde a infância pelos carros e pelo automobilismo.
Vou contar sobre como foi o dia mais feliz da minha vida em relação aos carros: 10 de novembro de 2007, 35ª Mil Milhas de Interlagos.
Em 2006…
No ano anterior, um amigo meu, Alexandre Oliveira (sim, o homem que desenhou o “GearHeadBanger”), ganhou um par de ingressos para as Mil Milhas e logo lembrou do meu fanatismo e me convidou para ir. Ali estavam carros impressionantes: Saleen S7, Aston Martin DBR9, Corvettes, Porsches, BMWs e protótipos, sendo pilotados por grandes nomes como Nelson Piquet e filho, Helio Castroneves, Pedro Lamy, Tony Kanaan e Raul Boesel.
Como a paixão era minha e não dele, não consegui convencê-lo a ficar mais do que umas três horas, mas foi o bastante para ficar com um sorriso travado no rosto por uma semana.
De lembrança ficou uma camiseta da TAM Linhas Aéreas, que arranjou o ingresso, e que guardo com carinho até hoje.
A “preparação”
Em 2007, estava ansioso para ver novamente as Mil Milhas, e dessa vez, inteira!
Nesse ano minha companhia foi outra, com muito mais amor pelos carros do que o Alexandre, fui com meu amigo Leandro Bertolino.
Para nossa total alegria descobrimos que a corrida seria parte da Le Mans Series de 2007, a última prova do calendário. O que significava carros da 24 Horas de Le Mans passando na nossa frente.
No dia da corrida, com nossa tosquice habitual, não planejamos nada, ou quase nada. Arranjamos uma caixa gigante de isopor e paramos no supermercado para comprar caixas de cerveja, um pacote de amendoim e dois de salgadinho. Chegando lá, sem ingressos, claro, fomos extorquidos por um flanelinha que me convenceu de que parar na esquina era uma excelente ideia, e ainda o pagamos com R$10,00 e duas latas de cerveja.
Parecendo dois sacoleiros com o isopor no ombro, descemos a Av. Senador Teotônio Vilela, morrendo de medo de os ingressos terem acabado e correndo porque estávamos em cima da hora e não queríamos perder a largada. Ingressos comprados, toca subir correndo para o portão A e entrar correndo na arquibancada da curva do Café.
Largada!
Nós, dois fumantes esbaforidos, demos sorte e chegamos junto com a largada. Foi incrível! Os motores do Peugeot 908, Aston Martin DB9R, Porsche 997, Ferrari 430, Corvette Z06, Spyker C8, todos berrando ao mesmo tempo! Lembro-me que fiquei pulando na arquibancada com aquele isopor na mão!
A corrida
Passada a euforia da largada, nos estabelecemos na arquibancada do Café, melhor lugar do circuito, e começamos a destruir a caixa de cerveja e a “vasta quantidade” de alimentos trazidos.
Logo percebemos que nossos temores com ingresso eram estúpidos, porque havia pouquíssima gente lá conosco.
Os Peugeots logo começaram a reinar em Interlagos, com seus V12 Turbo Diesel feitos para encarar os Audis em Le Mans. Os carros eram impressionantes, passeavam na pista sem fazer barulho! Isso mesmo, o som dos pneus e do deslocamento de ar eram mais altos que do motor.
Do outro lado, os Corvettes dilaceravam nossos tímpanos com o maravilhoso berro dos V8, os Porsches se digladiavam e trocavam de marcha bem na nossa frente, as Ferraris vinham com a elegância bruta costumeira e os Spykers cuspiam fogo.
Confesso que fiquei decepcionado por não ver o monstruoso Saleen S7 do ano anterior, mas estava numa alegria tremenda.
Logo que vimos que a Peugeot ganharia, como em todas as outras etapas do campeonato, decidimos torcer pela Creation e seus carros estranhamente pretos, porque normalmente eram azuis. Não me pergunte por que a Creation e não qualquer outra, acho que a cerveja e a falta de almoço já tinham feito efeito.
Algumas horas depois…
Depois de algum tempo, só víamos a corrida pela diversão, não havia como saber quais as posições dos carros, não havia nada que nos informasse além do narrador, que falava: “em primeiro o carro número 7, em segundo… VRUMMM, (um Pescarolo passava), …em quinto o carro número… (passando um Porsche seguido de uma Ferrari)”. Bom não dava para ouvir as posições, então passamos a ignorá-las e aproveitar a corrida em si.
A falta de público me deixou com a sensação de que o autódromo era meu, a arquibancada vazia, só com as marcações de “assento”, entre aspas porque ali é concreto duro para total conforto da “geral”.
O calor rachava, a cerveja diminuía e a fome aumentava.
A longa reta dos boxes
Depois de umas quatro horas de corrida e uma leve chuva, decidi esticar as pernas e “passear” por Interlagos. Foi a primeira de trocentas e quinze vezes que andei a extensão da reta dos boxes.
Chegando do outro lado, no S do Senna, descobri que para passar pela passarela precisava de credencial, que não tinha. Mas aí, tive mais um presente da falta de público. Passado o tempo, os seguranças já estavam entediados, contando quantas formigas passavam na frente deles e estavam pouco ligando para onde os espectadores iam. Desde que não entrássemos na área VIP e nem corrêssemos pela pista eles não iriam reclamar.
Percorri mais uma vez a reta dos boxes para avisar o Leandro das “novidades” e decidimos, ele, a caixa de isopor e eu, nos instalarmos na escada da passarela do fim da reta.
Na volta encontrei uma amiga minha que não via há anos, a Thais Auxilio, e seu namorado. Para nossa mortal inveja eles tinham credencial, tinham batido um rango no camarote e brincado um pouco com o autorama ali instalado, e não entendiam coisa alguma de carros. Aí foi o início da minha onda de terror por uma credencial.
Churrasco!
Depois de ficar um tempo “comodamente” de pé no fim da reta, tanto na escada, como com o nariz no alambrado em baixo dela, resolvemos retornar a arquibancada na curva do café, sem antes passar por uma barraquinha de churrasco que fez nossos estômagos roncarem.
Aquele maldito cheiro de espetinho invadia o circuito inteiro. Já alucinados pela fome, e com mais álcool do que sangue nas veias, decidimos que teríamos que comprar um daqueles espetinhos:
“Quanto tem aí na carteira, Leandro?”
“Nada.”
Mais preparados do que nunca, não levamos dinheiro. Ficamos vendo os carros para esquecer a fome quando um cara veio olhando nosso “colega isopor”:
“Opa! Quanto é a cerveja?”
“Não tá à venda, é nossa.” – foi o que respondi, mas, de repente, uma lâmpada acendeu em cima da minha cabeça e logo lembrei dos espetinhos. Enquanto isso o cara já ia virando as costas.
“Não! Espera aí!” – gritei, eu ou o meu estomago, não lembro – “É três conto!”
Dirigimos-nos então, pimpões que estávamos, à barraquinha. Para nossa surpresa e revolta a mulher do churrasco disse:
“Não posso vender.” – com uma cara de…
Em desespero lançamos: “Como não?!”
“Eu sou do evento, só posso dar um espetinho pra cada, não posso vender.”
Pensei em matar a figura, mas em vez disso fomos para a arquibancada coberta saborear nossos deliciosos espetinhos.
Tragam-me a noite!
Um pouco melhores, com os espetinhos na pança, Leandro, eu e o Isopor, que já havia virado nosso amigo íntimo, vimos o Sol descendo no autódromo. Imagem nada menos do que linda.
A noite renovou a corrida, os carros vinham com os faróis acesos na nossa frente e sumiam no S do Senna, estamos no Café de novo, e reapareciam na reta oposta, depois vinham em nossa direção e entravam no miolo do autódromo.
Decidimos então voltar para a escada do S e ver os discos de freio incandescentes na freada mais forte da pista.
Nessa hora já estávamos para lá de “doidões” pela falta de comida e excesso de birita, mas estávamos também maravilhados pela beleza dos carros cruzando a noite e cuspindo bolas de fogo pelo escapamento.
A maldita bendita credencial
Depois de umas seis horas andando para cima e para baixo em Interlagos, já me sentia em casa. Fiquei decidido a arranjar uma credencial.
Fomos mais uma vez atormentar os seguranças da passarela, em vão, mas percebemos que um pessoal estava indo embora e levando as credenciais. Perguntei para um que me negou, para dois, que também negaram, e assim fui atormentando todos que passaram, até que uma boa alma me deu a credencial, e o melhor, eram duas boas almas! Entramos nós dois na área VIP. Naquela hora já parecia algo como o paraíso, me sentia como o cara mais importante do mundo.
Os seguranças deram graças a tudo por se livrarem dos malas, e até sorriram ao nos deixar entrar, mas nosso querido isopor, já vazio, teve que ficar lá, abandonado.
Bandeira quadriculada
Depois de 8h58min21s822 a corrida acabou. Por mais bizarro que pareça, fiquei com uma impressão de “mas já?”. Nicolas Minassian e Marc Gené completaram 374 voltas a bordo do Peugeot 908 número 7, seguidos de Stéphane Sarrazin e Pedro Lamy no Peugeot número 8 e em terceiro o Creation número 9 pilotado por Jamie Campbell-Walter, Stuart Hall e Felipe Ortiz.
A essa altura estávamos no camarote, para ver com tristeza o pessoal do Buffet desmontando tudo, mas a fome já tinha sido esquecida, porque vimos a corrida de todos os ângulos possíveis, até ficamos em cima da saída dos boxes vendo os carros acelerando tudo no S do Senna e saindo dos pits.
Me dei conta de que fomos em quase todos os lugares de Interlagos, entrando pelo portão A fomos até ver como era o heliponto.
Um papo com o inglês
Com o fim da corrida, vem o pódio, óbvio. Descemos alegres para a área de box, estava tão estupidamente feliz por colocar meus pés no asfalto do autódromo e por ter visto uma corrida tão maravilhosa que fui de box em box, com a credencial no peito, dizendo “thank you” para os mecânicos que começavam a arrumar as coisas, e que deviam estar pensando que eu era maluco.
Essa parte foi bem legal, pois vimos os boxes com peças sobressalentes e pneus espelhados por toda parte. Lembro-me de um Porsche que estava com um anúncio de “à venda” com um e-mail para contato, fato um tanto pitoresco.
Fomos andando até chegar ao box da Creation, onde encontramos um inglês figura, não me pergunte quem era, que, fumando, trocou uma ideia conosco. O cara era muito simpático. Falei que torcemos por eles e ele ficou bem feliz. Perguntei do carro e ele teve que repetir umas dez vezes “in the pitlane” até que o Leandro entendeu o inglês britânico “da gema”. Depois ele apagou o cigarro e disse para fazermos o mesmo porque os outros mecânicos estavam guardando o combustível não usado. Segurança em primeiro lugar!
O Podium
Depois de nos despedirmos do pessoal da Creation, nos arrastamos fomos ver o pódio. Ali estavam parados o Peugeot 908 HDi FAP, o Zytek 07/S 2, o Porsche 997 GT3 e o Aston Martin DBR9, respectivamente vencedores da LMP1, LMP2, GT1 e GT2.
O 908 estava ali, bem na minha frente, metralhado por marcas de borracha dos “marbles” que forravam o circuito depois de nove horas de corrida. Posso dizer com orgulho que coloquei a mão na fibra de carbono de um carro que já correu em Le Mans! O segundo colocado daquele ano, aliás, atrás do Audi R10 TDI.
Os pilotos subiram, jogaram champanhe na gente, os mecânicos ao nosso lado, e eu não podia conter minha felicidade gearhead.
Estava cansado, podre, mas muito feliz e emocionado.
Ainda não acabou!
Depois de tudo isso, ainda demos uma passada na área atrás dos boxes e tivemos uma surpresa, a Platinuss estava com um mini estande lá, exibindo nada menos que três carros dos sonhos: Lamborghini Gallardo, Ferrari F50 e o fantástico Bugatti EB 110 que pensei nunca ver na minha vida ao vivo. Além de ver o EB 110 pudemos ouvi-lo quando os caras da concessionária o colocaram, rezando, em cima do guincho. Foi engraçado ver, o homem que parecia o responsável nem respirava, e soltou um “graças a Deus” quando o carro estava a salvo no guincho. Também com uma raridade de um milhão e trezentos mil dólares, segundo o cara da Platinuss, qualquer um ficaria nervoso.
De volta para casa
Foi uma luta sair de Interlagos porque fecharam a passarela do S do Senna e tivemos que dar a volta e passar por baixo do túnel. Cansados que estávamos, aquilo parecia ter as mil milhas da corrida. Por curiosidade, calculei que andei uns dez quilômetros aquele dia.
Quando voltei, descobri meu carro sozinho na esquina com um papel amarelo no para brisa: multa por parar na esquina. Amaldiçoei umas cinco gerações do flanelinha, mas dane-se, tinha visto a maior corrida da minha vida.
Voltando pela marginal ainda ouvia o som dos carros na minha cabeça, e eles ficaram zumbindo no meu cérebro até o dia seguinte.
Quando cheguei em casa, estava em estado tão lamentável, descabelado, com olheiras, torrado do Sol e com um olhar psicótico de felicidade, que minha mulher (revisora deste blog) começou a chorar e perguntar o que tinha acontecido comigo.
Respondi sem pensar nem meia vez: “A melhor corrida da minha vida!”.
Gostaram? Espero que sim!
E ainda trago boas notícias, vocês poderão ter uma história tão boa quanto a minha para contar. Em 15 setembro de 2012 vai acontecer as 6 Horas de São Paulo, penúltima etapa do mundial da FIA de Endurece. Os carros de Le Mans virão, incluindo o Audi R18.
Vejo vocês lá!
Fotos:
Acervo pessoal de Ricardo Varoli e Leandro Bertolino. Fotos tiradas com um celular com a bateria pela metade.
Aeeeeeeeeeeeee!!!! Puta que Pariu!! Esse dia foi foda!!Muito loko!!! Aquele peugeot era animal!!! E o EB110 sem palavras para aquele carro!!! O que eu não esqueço, foi o imbecil falando, nossa tem um toca fitas nele!!! Idiota!!! muleque do caralho!! uhauhauhuhahua
Sensacional Búfalo!
Obrigado!
Todas as palavras gentis de Leandro Bertolino.
Foram longas 3 horas. Mas as boas recordações ficaram. Quero dizer, as que EU acho boas. Lembro bem duns carros que giraram na curva e de que saímos do camarote da TAM porque ficava na reta e não dava pra ver muita coisa além de uns riscos coloridos e uma barulheira dos infernos. E os carros… é, não lembro muito bem. Acho que me lembro mais das promotoras d TAM…
Fico feliz de estar em um dia importante pra ti!
Valeu cara! Realmente quando o BMW M3 ecoava naquela cobertura da arquibancada era de sangrar os ouvidos!
O carro que bateu foi o Saleen S7, bateu no laranjinha, lembra que ele voltou para o box sem uma roda?
Sensacional, cara.
Depois desse artigo, cheguei a conclusão que estarei, se falta, nas 6 de São Paulo.
Muito obrigado cara!
Minha intenção é mesmo de chamar os GearHeads para Interlagos, assim como será o meu TCC, um livro sobre o autódromo.
Aliás, é por causa dele que as postagens estão atrasando he he he.
Te vejo em setembro nas 6 horas!
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Show de roda esse texto! Abraços!
Obrigado!
Gostei do trocadilho.
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